terça-feira, 1 de dezembro de 2009

Belo Horizonte ou Roça Grande?

Do urbano ao rural em três quarteirões.


Não é necessário ir longe para encontrar a tranqüilidade da vida do campo mesmo dentro da metrópole. Inserida num contexto rurbano a pequena propriedade com características rurais na região de venda nova, se encontra entre os bairros Céu Azul e Garças, tendo uma pequena produção de gado leiteiro, e um pequeno cultivo de hortaliças para consumo próprio. Tomo como referencia para o texto essa “fazenda”, uma vez que ela se encontra num contexto muito interessante. Situando-se entre dois bairros muito diferentes a pequena propriedade permanece quase que intacta a toda influencia da metrópole. Criando gado solto nos lotes vagos do bairro Enseada das Garças, e vendendo a pequena produção de queijo e leite para os moradores do bairro Céu Azul, o proprietário encontra nas diferentes espacialidades desses bairros a combinação ideal para ter mantido até o atual momento esse modo de vida ainda ligado ao mundo rural de produção.
Para compreender como esses dois bairros conseguiram ‘proteger’ esse modo de produção, é preciso entender como o zoneamento urbano é colocado nesses lugares. Começando pelo bairro Enseada das Garças, é fácil entender por que a criação de gado dentro da metrópole é viável. O bairro que possui poucos anos de loteamento, aos poucos começa a se urbanizar e a ter seus lotes murados, o que torna um pouco mais difícil a criação, mas não a impede. Com inúmeros lotes vagos, e extensas áreas que ainda não foram loteadas e estão orientadas a especulação imobiliária, o bairro oferece uma gama de locais para alimentar a criação bovina, com diferentes tipos de ‘pastos’. Com uma inexpressiva população e uma das mais baixas densidades demográficas da cidade, o bairro é zoneado para ser apenas residencial, e sua população varia entre classe media a alta, com grandes lotes de mais de mil m².
A falta de recursos quanto ao comercio faz com que o bairro sirva apenas como dormitório, sítios de finais de semana e para festas. Os animais andam pela tranqüilidade das ruas do bairro, onde apenas uma linha de ônibus opera com pouca freqüência se comparada às demais linhas urbanas de BH. Esse conjunto de fatores aliados a uma baixa fiscalização da prefeitura faz com que a criação dos animais na rua seja comum e é feita por mais outras duas propriedades que se encontram um pouco mais afastado do bairro, a oeste já no município de Ribeirão das Neves.
A pequena propriedade em questão situa-se no fim de uma rua sem saída exatamente na divisa dos dois bairros. No fim da rua uma porteira tipicamente rural nos dá idéia do que iremos encontrar ao atravessá-la. Uma pequena via de terra de aproximadamente 100m liga a cidade a ‘sede’ da pequena propriedade. A pequena casa que abriga 5 pessoas é cercada por um grande terreno, que possui um pequeno curral e também um estábulo, para os cavalos que são usados para tanger o gado pelo bairro. Esse terreno é muito grande, mas devido a inúmeros problemas na justiça o morador e pequeno criador não é o dono da terra, tendo mudado para lá há cerca de 40 anos, quando apenas fazendas existiam na região, e a cidade ainda não havia se interessado pela região. Nesse gigantesco terreno, ouve uma ocupação recente do Movimento dos Sem Terra, mas não chegou a atingir essa pequena propriedade. Uma pequena horta e algumas árvores frutíferas como jabuticabeiras e goiabeiras são encontradas na propriedade, mas as frutas são de consumo apenas dos moradores, não chegando a serem vendidos no bairro Céu Azul.
Para entender agora como a pequena propriedade consegue obter capital com a exploração do gado na metrópole é necessário entender também o Céu Azul. O bairro se insere num contexto completamente oposto ao Garças, tendo a principio uma das maiores populações de Belo Horizonte. Sendo um bairro extremamente populoso, com seu zoneamento feito com pequenos lotes, e algumas áreas de vilas e favelas, o bairro possui uma rua principal que se caracteriza por ser um centro comercial de uma grande região. Contemplando inúmeros bairros em volta, esse pequeno centro comercial se assemelha aos centros das pequenas cidades do interior mineiro, com sua rua principal cheia de lojas e pessoas. Por ser um bairro periférico esse centro comercial tem nos finais de semana o auge do seu desempenho, uma vez que os moradores do bairro Céu Azul em sua maioria trabalham longe, tendo apenas os sábados e domingo livres para comprarem os bens que lhes são de interesse. Uma enorme variedade de produtos e serviços é encontrada, inclusive leite e queijos frescos, produzidos pelas vacas que pastam na grama dos vizinhos do bairro ao lado.
O bairro Céu Azul tem em seus moradores muitos que vieram do interior para trabalhar na metrópole, e assim muito dos costumes dos moradores são voltados mais a vida do rural do que propriamente urbana. Para não serem devorados pelo consumo intenso dos pequenos supermercados que proliferam na periferia, muitas pessoas ainda preferem comprar verduras nos sacolões, carnes nos açougues, concertam suas roupas nas costureiras, etc. Outro fator interessante dessa cultura do interior está na venda de pães de manha, onde uma bicicleta carregada com um cesto cheio de pães passa todos os dias de manha com sua tradicional buzina chamando os moradores. Esse padrão de vida mais parecido com as das pequenas cidades do interior reflete o interesse do consumo por produtos mais frescos e produzidos perto de onde são consumidos, daí o segredo da criação das vacas no cenário metropolitano. Os moradores do bairro Enseada das Garças não procuram consumir o leite e o queijo fresco produzidos diariamente próximo de suas casas, pois procuram na ‘facilidade’ do hipermercado realizar seu consumo desse tipo de produto. Como não há comércio no bairro, os moradores tendem a realizar compras longe da região, inclusive não indo ao Céu Azul, que por ter características de periferia, inibe os ‘ricos’ de irem até lá. Esses moradores do Garças, são recentes na região vindos de outros lugares da metrópole em busca da paz e a tranqüilidade que o bairro oferece, e como já estão completamente inseridos na vida metropolitana, seus costumes e gostos se assemelham aos que a vida da cidade grande induz.
Nessa breve e rápida apresentação das espacialidades de interesse do texto, é possível ver e entender como a metrópole tem a capacidade de produzir cenários que para muitos seria irreal e que não fazem parte de uma grande cidade. Belo Horizonte carinhosamente apelidado de Roça Grande nos mostra que nem só concreto e Mcdonald’s fazem parte de uma metrópole, e que é possível dentro de todo o cenário contrario ao que se imagina ter leite fresco tirado na hora. A cidade nos prega peças engraçadas em algumas situações, e numa rápida reflexão é possível enxergar a seguinte imagem. Uma pessoa que mora no bairro Céu Azul e trabalha como vendedor em um escritório de uma imobiliária no centro da cidade, bebe leite todo dia de manha produzido na pequena propriedade vizinha a sua casa, leite esse que foi feito por uma vaca que pastava em um lote vago do bairro Enseada das Garças. Certo dia essa sujeito tem o seguinte dilema na sua frente, uma pessoa quer comprar um lote no bairro em que as vacas pastam, e assim acabar com o alimento do gado que produz o leite que ele tradicionalmente bebe todos os dias. Nessa contradição que surge com os diversos interesses existentes na metrópole, vemos que é inerente a expansão urbana acabar com todas as possibilidades de produção rurbana, mesmo que de baixa produtividade e que não vise lucros exorbitantes.
Por fim uma rápida equação pode ser formulada para melhor entender a pequena produção feita nos interstícios da metrópole, e mesmo parecendo fugir a toda lógica da produção capitalista vigente na cidade, ela é exatamente o que se espera de uma pequena ‘fazenda’ capitalista. A equação é a seguinte:

Pequena área para cercar o gado + Área para pastagem + Consumidores próximos a produção = Lucro e continuidade da pequena bolha rural na cidade.

A pequena produção não influencia a metrópole, mas também não é totalmente influenciada por ela, aproveitando em verdade dela, pois os espaços de produção e de consumo estão mais próximos que na tradicional espacialidade rural, ou mesmo rurbana dos interiores não afetados pela metrópole. O transporte e a mão de obra são mínimos aumentando a mais valia da produção, e os consumidores assim como no interior se tornam mais que consumidores dos produtos, se tornam conhecidos e até amigos do produtor.
Do leite fresco ao pão entregue em casa, Belo Horizonte, em suas entranhas ainda guarda um pouco do interior de minas, um pouco da vida pacata e tradicional das gerais, e mesmo no furor do caos metropolitano, é possível ouvir os pássaros pela manha cantarem saudando mais um dia que surge. Alguém duvida que BH é uma Roça Grande?

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