segunda-feira, 7 de dezembro de 2009

Epidemia metropolitana

Antes do nascer do Sol eles já estão de pé. Seu Eustáquio e dona Dora já começaram seus afazeres cotidianos, os três filhos começam a esfregar os olhos na cama, e aos poucos vão levantando. O fogão a lenha é aceso para se fazer um café para acompanhar a broa assada na tarde passada. Seu Eustáquio já se adianta em chamar seu Tonho para ir com ele subir a serra atrás do gado que pasta lá em cima. A fumaça sai da casinha lentamente, embriagada pelo ar orvalhado da manha que se aquece com raiar do dia. Dona Dora já está no quintal jogando milho para as galinhas, enquanto seus filhos buscam afazeres próximo da casa. Um vai ajudar o pai com o gado, o outro segue para trabalhar como servente na construção da casa nova de um tio, enquanto a caçula corre lá fora com outras crianças. Uma família tradicional do interior de minas, acostumados com a dureza do campo, do trabalho árduo no sol a pino e nas madrugadas frias, na rotina que nunca se altera. Vivem em Cardeal Mota, pequeno vilarejo do município de Santana do Riacho, perto da serra do Cipó. A serra serve como um grande pasto, onde o gado fica livre na vertente ingrime do espinhaço. Os rios que cortam a região servem de reduto para a pesca, o lazer das crianças que se divertem nos poços, praias e cachoeiras. Nada atrapalha a rotina desse povo que vive em paz com seu ambiente, lutando contra as adversidades que ele impõe e sabendo aproveitar das coisas ao seu redor para seguirem levando a vida. O dia arrasta-se por longas horas, enquanto dona Dora sentada na varandinha da cozinha costura uma calça para seu filho mais moço.

De repente um som invade o quintal. Um rugido alto e longo começa a surgir ao longe, e dona Dora fica encucada tentando descobrir o que é. Nunca tinha ouvido aquele som, ficou meio curiosa e apreensiva, o que seria? Ela ainda não sabe, mas em breve sua vida irá mudar para sempre. O som que ela escuta ao longe é o da metrópole. Um som constante, que começa aos poucos a ensurdecer aquele pequeno povoado. Dona Dora já tinha ouvido falar da tal cidade grande, mas nunca tinha ido até ela, nem tinha vontade. Estava satisfeita no seu pedaço de terra que para ela é o melhor lugar no mundo. Mas aos poucos a cidade começa a chegar até ela. Em casa ela percebe que o lugar não é mais o mesmo. Todo fim de semana inúmeras pessoas começam a ir até lá, onde até pouco tempo era só mais um pedaço do sertão das gerais. Em busca da paz que ela sempre teve, os citadinos metropolitanus chegam infectados por vírus com os quais dona Dora não pode se proteger, pois seus anticorpos ainda os desconhecem. Esse vírus logo atinge todos os moradores, e como uma epidemia, ataca os indefesos moradores de Cardeal Mota. Ele se manifesta na forma monetária do valor do trabalho. Uma gama de enfermidades atinge o pessoal, mas logo eles se recuperam, e começam a entender o que está acontecendo com seu lugar.

A metrópole o invadiu, transformou tudo que eles conheciam em um espaço de lazer e descanso para os estressados moradores do caos. Dona Dora hoje acorda cedo não com o cantar dos pássaros, mas com a buzina de um carro. Logo que a metrópole atinge um lugar, ela começa a alterá-lo e ai não há mais volta. As terras que sempre foram da família de dona Dora não são mais. O lugar que ela nasceu não pode mais ser habitado. Uma cerca a expulsou. O lugar é agora demarcado, aqui pode ali não. A venda da esquina não vende mais o saboroso leite tirado na hora da casa de seu Taguinha. Ela nem existe mais. Seu Taguinha não suportou o vírus e faleceu nos primeiros anos da epidemia. Seus filhos que cuidavam da venda, resolveram fugir, antes que sofressem do mesmo mal que o pai. Fugiram para a cidade grande, em busca de algo que eles nunca quiseram, mas que graças à rápida mudança na vida de sua pequena cidade, tiveram de ir buscar. Empregados em fabricas e no comercio barato, vêem se misturados em meio a uma sopa de leprosos sociais, que aos poucos vão perdendo partes do seu todo. Não possuem mais o rio, a cachoeira, a serra. Sonham com o dia em que irão regressar a sua antiga terra natal, mas ela não existe mais. Não do jeito que eles a conheciam.

Enquanto isso em Cardeal Mota, a metrópole já toma conta de tudo. O hospedeiro já está completamente infectado pelo vírus da vida pós-moderna. Dona Dora agora não acorda mais as quatro da manha, não precisa, seu trabalho agora é apenas observar aquelas pobres almas metropolitanas, que buscam a cura de suas doenças longe do infecto urbano. Ela não pode mais criar o gado, plantar a horta livremente, nem deixar as crianças na rua. Não, tudo está diferente. O urbano começa a dominar o vilarejo, o leite agora é de caixinha, o iogurte de marca, importado de preferência. O rico morador do caos foge com seu blindado da zona de guerra, mas leva as lembranças da batalha consigo. E como um guerreiro medieval das cruzadas, leva consigo a fé para converter os moradores daquele longínquo vilarejo que com seus tesouros naturais atraem mais e mais soldados. A fé não é mais a católica, e as armas não mais espadas. O deus Capital e sua gama de documentos levam a burocrática vida urbana, para o éden. A terra agora possui dono, e ele não mora lá. O dono vive na metrópole, controla com o dinheiro o espaço distante. Constrói uma pousada, e assim os moradores da cidade vão até ela, e voltam para casa felizes. Consomem o lugar, destroem, alteram. São chamados de turistas, e demonstram ser parasitas do espaço. Levam consigo toda uma serie de vícios da cidade, e obrigam os moradores a se enquadrarem naquilo que acham que é o certo. Os obrigam a trabalhar para eles. Os pobres escravos de Cardeal Mota eram livres até pouco tempo, mas com a chegada da cruzada do capital foram levados a uma escravidão de senhores de engenhos modernos, que estão de terno e gravata, chibatando as costas dos empregados com ameaças financeiras.

Os filhos de dona Dora atualmente são assalariados. Foram obrigados a isso, pois tudo agora tem de ser comprado. Tudo é caro. O valor não é justo. Não há competição, e sim imposição. A nave mãe Belo Horizonte amplia a todo instante seu campo de força, para além do concreto e asfalto, atingindo a alma dos moradores do cipó. O rio não é mais limpo, a água não é mais pura, o lixo se torna constante. O lixo produzido pelos parasitas da metrópole é o que mais representa essa invasão do espaço. Sacos, garrafas, latas. Toda gama de produtos consumidos ficam a mercê da natureza. Os visitantes da metrópole consomem muita coisa, mais do que precisam, mas gostam disso. Gostam tanto de consumir que consomem até o espaço daquele povo. O turismo não é uma agressão, é a solução. Solução que o capital obrigou que existisse, pois uma vez que foi invadido, não há como escapar de outra forma que não a de alimentar o ego dos metropolitanos. A dura vida do campo se altera, e se transforma numa lúdica experiência de tranqüilidade. Vende-se aquilo que outrora era a vida cotidiana. Dona Dora não mais vive do campo, pois o campo não mais existe. Criam-se parques, para que o homem da cidade não destrua ainda mais o lugar. O parque fechado impede não só o turista, mas também o próprio caiçara de ir aos lugares que antes foi sua morada. O parque é necessário não para garantir que as gerações futuras usufruam da natureza do lugar, mas para que elas possam consumir assim como seus pais o lugar. O turismo começa a ser pensado a longo prazo, e o parasita já tomou conta do hospedeiro. Não há como voltar atrás, pois com a proteção do espaço, cria-se a um parque de especulações sobre como irão viver os filhos dos moradores de Cardeal Mota. Eles não irão ter mais a vida que seus pais levaram, não conhecerão a serra como seus antepassados, já nasceram infectados. Querem ir para a metrópole, para trabalharem, ganhar dinheiro, e depois no feriado irem visitar seus familiares e quem sabe até subir a serra. Hoje em dia vivem como um morador da extrema periferia da metrópole. O plantio não existe mais, pois não há terras para isso. Elas foram convertidas em papéis que estão guardados no fundo da gaveta de algum escritório na metrópole.

Dona Dora tem de vender seu trabalho para sobreviver. Aluga seu espaço para que ele não fique a mercê dos especuladores que querem transformar sua casa num hotel. Ela já esta cansada do trabalho, e da dura vida que tinha, mas não pode parar, pois o homem metropolitano precisa dela. Precisa que ela alugue um quarto, faça um café, conte casos, converse com ele. Precisa consumir tudo que puder, mas não porque realmente precisa, porque está em suas veias o vírus do consumo. Vão até a serra em busca disso. Em busca de personagens que conte para ele como é dura a vida no campo, como foi dura as experiências de sua infância, de como foi difícil para ela trabalhar desde pequena. Gostam de ouvir isso, de ficarem impressionados com essas historias, para depois que voltarem para a cidade grande pensarem em como sua vida é boa. Como é bom não ter de acordar de madrugada, bater enxada de sol a sol, subir a serra em busca do gado perdido. Eles só vêem isso nas novelas e filmes, e esquecem como as pessoas vivem. A metrópole muda tanto a vida das pessoas que elas não se vêem fora dela. Não conseguem viver além dela, e buscam leva-la aonde vão. Levam a fé e como jesuítas do século XXI convertem todos. Dona Dora hoje vive daquilo que lhe foi imposto. Vive com certeza melhor, pois seu trabalho é mais “fácil”, menos braçal, vive com dinheiro que antes nem fazia tanta falta, mas que hoje é tão necessário como uma vacina para as epidemias. O capital não fica parado, nem a capital. Temos a ilusão de que a metrópole é feita apenas de concreto e asfalto, mas esquecemos de toda expansão virtual que ela possui. Além do espaço físico nítido, novos espaços vão sendo ocupados, usurpados, consumidos, transformados em prol do bem geral da metrópole. Será o caminho certo a ser seguido? Não há mais volta, e os moradores apenas se integram mais e mais. A dura vida no campo se transformou em entretenimento para a vida de quem nunca viveu nele, mas que sonha no fundo em fugir de vez da cidade. Quantas vezes não ouvimos a seguinte frase: “Quando aposentar vou fugir pro campo”. É assim, enfermos do caos metropolitano que não conseguem viver em paz na cidade. Precisam ir além, mas querem no fundo ter a “segurança” que a vida pós-moderna lhe passa. E essa segurança é o consumo.

Toda a transformação vivida por dona Dora é só um exemplo de como a vida das pessoas de Cardeal Mota foi alterada com a chegada do turismo, das pessoas, do capital. Tudo isso gerou uma imensa mudança social e cultural no vilarejo, que hoje se transforma em pólo do eco turismo mineiro. Hoje se encontra totalmente inserido no contexto metropolitano, pois o espaço é (re)organizado a partir do centro distante 100km de lá, por pessoas que as vezes nunca foram até Cardeal. Para se entender o espaço, é necessário saber quem o altera, e para isso nem precisamos ir longe, é só abrir o olho para o que se passa a nossa volta. No fundo dona Dora ainda acorda cedo, ainda sente o cheiro da manha vindo do ar frio de inverno, mas o sentimento não é mais o mesmo, pois tudo esta mudando. Seus vizinhos, sua família, seu lar. Felizmente para ela, seus anticorpos logo se adaptaram ao vírus trazido pelo homem metropolitanus, mas muitos pereceram pelo caminho. Sem lar, trabalho e saúde, não se adaptaram ao caos mesmo estando longe dele, mesmo tentando se esconder. A demanda pelo turismo é imposta longe do lugar a ser visitado, mas é potente o suficiente para alterar tudo em prol dele mesmo. Não há como escapar, ele já esta ai. E você, vai para a serra se divertir ?

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