sexta-feira, 15 de junho de 2012

Um pouco de amor que nos fugiu

Há dias azuis, há dias ensolarados, há dias cinzas, há dias escuros, há dias laranjas, há dias mais verdes, há dias rosados, há dias marrons, e há ainda dias em que todas as cores parecem dar as caras. Mas todas, todas as noites bhbilônicas são alaranjadas. E sob a luz laranja, um povo errante cria suas memórias nos caminhos vazios das ruas varzeanas. Esse povo miserável, é fruto de toda perversidade de uma sociedade que necessita do exemplo. E o exemplo é sempre o de desgraça, o de uma vida louca, errante, cheia de vícios e violência. Um povo violentado por olhares que não os vê, massacrado por preconceitos socialmente criados. Na várzea toda noite é fria e morta para os adestrados homens que temem o vazio noturno. Toda uma população teme aquele local habitado pelo povo das ruas, o povo escolhido para representar toda a desgraça que nossa sociedade pode criar. Para aqueles que possuem um lar, é tão surreal imaginar uma noite na rua que não conseguem conceber o que é viver sem ter quase nada. E quase nada mesmo, porque não há contato com o mundo perverso que exige que eles sofram. Isolados na suas discussões com a realidade, não são ouvidos mesmo quando são verdadeiros sábios. Não são levados em conta como pessoas da mesma cidade, não existem para os que mandam nos adestrados homens. São apenas indigentes. Indigentes. Palavra mais clara não há para definir o que os escravos bhbilônicos pensam deles. Não são pessoas como nós, são como uma outra espécie inferior a nossa. São os homo-abutris, homens que vivem do resto, porque também foram considerados resto. E ninguém na cidade faz nada para ajudá-los, porque parecem não falar a mesma língua. Fingem muito bem não ouvir seus pedidos, porque não se consideram culpados por sua desgraça. Acreditam no deus Capital, que os convenceu de que aqueles homens só estão naquela condição porque querem. Preguiçosos diriam. E os escravos não ligam para eles, porque há desgraça demais em suas vidas para suportar a de outras pessoas. E não percebem que preguiçosos são eles mesmos, por não fazerem nada para mudar. “Dá trabalho demais, não tem como mudar, vai demorar muito...” Clara conversa de preguiçoso, que não percebe o quanto esse povo excluído trabalha. A propaganda publica-privada, estado-capital, mostra o orgulho do catador de lixo, por ser uma peça fundamental no processo de reprodução do capital. Ele recicla o resto do consumo, incluindo novas possibilidades de recriação de mercadorias, que ele nunca irá comprar. Afinal reciclar dá muito pouco dinheiro, mas nada melhor que o orgulho de reciclar. Pobres homens que só possuem o direito de se orgulhar, mas como fazer isso na condição miserável em que foram deixados? É muita maldade sobre essas pessoas, excluídas pelo preconceito, humilhadas pela ganância, desprovido de “sorte”. Não lhes restaram nem a tão necessária esperança. Os escravos os temem, acreditam serem bandidos, ladrões, mas são apenas homens humildes, humilhados demais para conseguirem mostrarem que são assim como os outros, Gente!

Era mais uma noite dessas frias, laranja, e eu no regressar do culto, orbitava ao redor do ponto de ônibus, em embriagada lucidez noturna, na ansiedade do retorno . Foi quando percebi um homem como eu, deitado no jardim do Boulevard que cobriu o defunto rio Arrudas. Ali no frio eu não sabia como ajudar aquele homem que dormia em sono pesado. Fiquei triste por me sentir impotente em não poder ajudar aquele homem. Na Bhbilônia não podemos nos dar ao luxo de ter pena de ninguém, há miséria demais para não sofrer. E acabamos por nos tornar frios os suficientes para ver homens dormir no frio e não conseguir nada fazer. Mas ai um outro homem varzeano, apareceu, com um carrinho de compras cheio de papelão. Estava ali trabalhando àquela hora da noite, em meio ao vazio, catando o lixo do dia, para ganhar o que comer no outro que viria. Cantarolava uma antiga musica de sua terra, e sorria tranquilo, sereno. Pegava um papelão aqui, outro acolá e logo já havia enchido todo o carrinho, que quase transbordava. O ônibus não vinha, e foi ai que comecei a acompanhar mais o que aquele senhor estava fazendo. Seu jeito me lembrava várias pessoas que conheci na vida, e me sentia mal por imaginar que aquele homem talvez não tivesse onde dormir, e assim como o pobre homem deitado no jardim, não ter ninguém para ajudá-lo. Mas eis que me enganei profundamente sobre a Bhbilônia, e reascendi um pouco minha esperança nas pessoas. Alias não nas pessoas, mas no próprio gênero humano, porque os adestrados não conseguem ver, ou perceber que existe amor entre o povo da rua. São tratados com tanta maldade pelo resto da sociedade, que têm de se ajudar para não sucumbirem ao frio e a depressiva exclusão. Aquele senhor do carrinho, pegou um papelão e caminhou lentamente até o homem no jardim. Caminhou os dez metros mais tranquilos de sua vida, e cobriu com papelão o homem que dormia. Voltou ao carrinho e pegou mais papelões, e serenamente seguiu de volta ao homem, e lhe fez um travesseiro, e esticou um papelão que serviu de cama. Extasiado com a demonstração de afeto gratuita, publica, e realmente carinhosa daquele homem para com outro, entrei em uma crise de estúpida desorientação, porque não conseguia crer que aquele homem tão humilhado, pudesse agir com tanto amor. O ônibus veio, e eu ainda em choque quis conhecer o senhor do carrinho com papelão, mas não tive como. Voltei pra casa e vi os homens que vivem na idade da pedra nos arredores da várzea, sucumbirem à envenenada morte, que a Bhbilônia permite como controle dessa miserável população. Quantos homens como aquele senhor estão por ai na rua? Quantos homens de bom coração são excluídos e mortos pela sociedade por serem parte de um povo? O genocídio autorizado pelo estado, através de centenas de covardias diárias, é o que falta perceberem os homens adestrados. Mais e mais pessoas são expulsas de suas casas, de suas vidas, e são obrigadas a viverem na rua, na condição de homo-abutris, sendo o resto da sociedade, mesmo quando não fizeram nada pra isso, mesmo sendo pessoas de bons corações.

Ainda há amor entre os homens, ainda há amor. E isso me deu um pouco de esperança, pois se há amor, é porque temos condição de mudar. Em casa longe do frio, sob a luz clara do quarto, senti-me confortado por um rápido instante, ao relembrar constantemente aquele belo ato de amor entre os homens. “Boa noite amigo!” Foi o que teria dito.

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