Era mais uma noite dessas
frias, laranja, e eu no regressar do culto, orbitava ao redor do ponto de
ônibus, em embriagada lucidez noturna, na ansiedade do retorno . Foi quando
percebi um homem como eu, deitado no jardim do Boulevard que cobriu o defunto
rio Arrudas. Ali no frio eu não sabia como ajudar aquele homem que dormia em
sono pesado. Fiquei triste por me sentir impotente em não poder ajudar aquele
homem. Na Bhbilônia não podemos nos dar ao luxo de ter pena de ninguém, há
miséria demais para não sofrer. E acabamos por nos tornar frios os suficientes
para ver homens dormir no frio e não conseguir nada fazer. Mas ai um outro
homem varzeano, apareceu, com um carrinho de compras cheio de papelão. Estava
ali trabalhando àquela hora da noite, em meio ao vazio, catando o lixo do dia,
para ganhar o que comer no outro que viria. Cantarolava uma antiga musica de
sua terra, e sorria tranquilo, sereno. Pegava um papelão aqui, outro acolá e
logo já havia enchido todo o carrinho, que quase transbordava. O ônibus não
vinha, e foi ai que comecei a acompanhar mais o que aquele senhor estava
fazendo. Seu jeito me lembrava várias pessoas que conheci na vida, e me sentia
mal por imaginar que aquele homem talvez não tivesse onde dormir, e assim como
o pobre homem deitado no jardim, não ter ninguém para ajudá-lo. Mas eis que me
enganei profundamente sobre a Bhbilônia, e reascendi um pouco minha esperança
nas pessoas. Alias não nas pessoas, mas no próprio gênero humano, porque os
adestrados não conseguem ver, ou perceber que existe amor entre o povo da rua.
São tratados com tanta maldade pelo resto da sociedade, que têm de se ajudar
para não sucumbirem ao frio e a depressiva exclusão. Aquele senhor do carrinho,
pegou um papelão e caminhou lentamente até o homem no jardim. Caminhou os dez
metros mais tranquilos de sua vida, e cobriu com papelão o homem que dormia.
Voltou ao carrinho e pegou mais papelões, e serenamente seguiu de volta ao
homem, e lhe fez um travesseiro, e esticou um papelão que serviu de cama.
Extasiado com a demonstração de afeto gratuita, publica, e realmente carinhosa
daquele homem para com outro, entrei em uma crise de estúpida desorientação,
porque não conseguia crer que aquele homem tão humilhado, pudesse agir com
tanto amor. O ônibus veio, e eu ainda em choque quis conhecer o senhor do
carrinho com papelão, mas não tive como. Voltei pra casa e vi os homens que
vivem na idade da pedra nos arredores da várzea, sucumbirem à envenenada morte,
que a Bhbilônia permite como controle dessa miserável população. Quantos homens
como aquele senhor estão por ai na rua? Quantos homens de bom coração são
excluídos e mortos pela sociedade por serem parte de um povo? O genocídio
autorizado pelo estado, através de centenas de covardias diárias, é o que falta
perceberem os homens adestrados. Mais e mais pessoas são expulsas de suas
casas, de suas vidas, e são obrigadas a viverem na rua, na condição de homo-abutris, sendo o resto da
sociedade, mesmo quando não fizeram nada pra isso, mesmo sendo pessoas de bons
corações.
Ainda há amor entre os
homens, ainda há amor. E isso me deu um pouco de esperança, pois se há amor, é
porque temos condição de mudar. Em casa longe do frio, sob a luz clara do
quarto, senti-me confortado por um rápido instante, ao relembrar constantemente
aquele belo ato de amor entre os homens. “Boa noite amigo!” Foi o que teria
dito.
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