quinta-feira, 5 de novembro de 2020

Uma Carta de 2056 para mim em 2020

O que faz um poeta marginal em uma pandemia? Descrever o mundo se tornou uma impossibilidade devida a instabilidade do real nesses tempos em que a vida se tornou estatística lida e relida a todo instante. Nas telas que brilham em todos os lugares, desviando nossa atenção a uma contagem diária. Todo dia eu quero caminhar nas ruas, mas tenho medo das vias de contágio. Não se sabe se haverá pedágio a longo prazo, e se haverá prazo longo o suficiente para dar tempo de reverter o placar e a forma de pensar. Não tenho mais dúvidas de que estamos no fim do século XX, e o XXI é muito, mas é muito inconcebivelmente diferente do que podemos supor. Não sei como serão as ruas quando eu estiver com 70 anos em algum bar da Bahia ou da Espirito Santo, olhando a chuva lá fora enquanto rememoro a antiguidade remota que foi viver essa pandemia preso em casa em níveis tóxicos de ansiedade. Lembrar dos 5 anos que se passaram e de como a década de 30 foi revolucionária. Mesmo que tudo pareça distante, foram tempos interessantes. Depois de mais uma dose de uma cerveja produzida por meios tradicionais, em meio a riqueza abundante dos dados projetados em nossas mentes diretamente sem necessidade de cabos. Acabo a dose e dou mais um gole na cerveja. Lembro da vida analógica. Dialógica sinistra entre o passado e o futuro. Um tempo em que o presente passou e ninguém viu. É engraçado como hoje nessa quinta-feira chuvosa de outubro de 12056, que é como nós atualmente marcamos o tempo, diferentemente do começo do século quando ainda não contabilizamos dez mil anos de história da humanidade, percebi que esqueci o guarda chuva em algum lugar no caminho de casa para o bar. Mas não faz mal, a mudança climática é real, mas cada vez mais essa geração global que nasce conectada e que ocupa o espaço não com Estados, mas com coletivos que se espalham pelas redes, vão conseguir adaptar a humanidade a conviver com as mudanças do clima. Que aliás desde que os supercomputadores quânticos processaram as questões sobre produção de energia de fusão nuclear e a miniaturização das usinas produziu tanta eletricidade, que a quantidade de máquinas que vivem em comunhão conosco hoje é tão grande que mal consigo explicar. São nuvens de drones que cruzam os céus transportando mercadorias. Afinal o capitalismo não acabou. Ele só se adaptou as novas tecnologias. Que é o motor dessa ideia humana tão devastadora. Mas ainda sim, há perspectivas que até o fim do século essa ideia se dissolva no imaginário e torne apenas mais um conteúdo dos livros de história.

Mais um gole no imaginário e me lembro dos diários que nunca escrevi sobre o período da quarentena. Daquelas manhãs de abril em que o planeta inteiro parou. A experiência da pausa planetária na impensável realização da ideia de Raul Seixas do “dia que a terra parou”, fez com que por alguns dias a humanidade se conecta-se de alguma forma. Nunca mais nada perto disso aconteceu. As redes conectam e dissipam rapidamente nossas relações, talvez por isso os bares se tornaram locais de resistência para o encontro. Antes um pouco daqueles dias, mal imaginávamos que todos os nossos planos iriam por água abaixo. Embaixo d’água a cidade mergulhada e depois nos meses quente do ano estranho de 2020, fogo queimou e ardeu sem dó nem piedade em altas temperaturas que transformavam as tardes em panelas de pressão, física e mental. Nada comparada as altas temperaturas constantes e das ondas de frio inclementes que assolam cada vez mais o continente. O desequilíbrio climático é nossa realidade. Mas ao mesmo tempo, o reequilíbrio é o que mais tem transformado os humanos, nos reconectando com uma causa coletiva jamais vista antes. Os cinco anos de pandemia foram importantes para pela primeira vez colocar toda a humanidade diante de um inimigo. Até então os inimigos eram os outros. No começo esse lema continuou entre os mais conservadores, presos ao século XX e distantes do século XXI. Mas ao longo daqueles anos, as percepções foram mudando, e a vontade de vencer de vez aquele vírus, fez com que muitas coisas mudassem. As relações econômicas sofreram tanto que uma nova economia teve de ressurgir em apelo ao desabastecimento e a concentração de renda. Nada de revolucionário, mas o suficiente para que os jovens de hoje, nascidos na década de 30, sejam incrivelmente mais conscientes do global do que eu poderia conceber nos meus 20 anos. Mais um gole e me aqueço vestindo um casaco de couro sintético aquecido por uma centena de milhar de usinas nanotermais, que geram calor em níveis moleculares. Hoje todo mundo tem uma dessas. São leves e finas. As vezes visto minhas blusas antigas, cheias de marcas da rotina que fora viver os anos 30. O impacto das mudanças tecnológicas junto das dinâmicas sociais e de trabalho que mudaram drasticamente, fizeram que chegássemos na década de 50 vivendo de forma mais calma. Mesmo estando acelerados pela rotina que ainda insiste em incentivar a produção de alguma atividade, mesmo não remunerada, acho que vivemos mais em paz conosco mesmo porque sabemos que somos humanidade e o coletivo é a única possibilidade de não destruirmos nosso planeta, como quase fizemos lá nos anos 20. Mas não me leve a mal se eu me esquecer de todos os detalhes, sabe como é, foram dias repetidos a exaustão enquanto sonhávamos com vacinas e a volta a uma normalidade que nunca fora normal. Mais um gole e decido voltar para casa. Deixo no balcão minha digital que valida a conta e posso seguir para casa. Mudei-me para uma casa. E vivo feliz nela. Plantei uma jabuticabeira e meus netos hoje sobem e se divertem nela. Mesmo em meio ao mar de elétrons organizados que circulam dados em diversas camadas de ar, meus netos sobem em jabuticabeiras para se lambuzarem. Outubro é época, e o pé tá cheio.

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