sexta-feira, 20 de maio de 2011

Contos do Xingu: Ouro de Tolo

Era quase noite e a pequena canoa ainda estava longe da margem. O pequeno motor a muito não funcionava, e o remo era o único propulsor daquela pobre embarcação. A água adentrava por inúmeros e pequenos furos e inundava toda a canoa, sendo que para cada remada, duas vezes tinha de ser passar a caneca no fundo e esvaziar o tanto que desse. O cansaço era maior que a noite que chegava, e a pouca luz que ainda tinha, permitia enxergar apenas pequenos vultos nas margens. A densa floresta enmuralhava o horizonte, e uma pequena prainha se fazia vista com muito esforço.

Vinha na canoa, em remadas lentas e longas, Seu Raimundo Filho, garimpeiro daquelas terras, filho do Xingu. Na Volta Grande, próximo a vila do Galo, remava para tentar chegar a povoação antes que a noite engolisse todo o lugar. No rio, que sossegado escorria em lenta correnteza, se ouvia o assombroso grito do Bugiu, um enorme macaco que habita o topo das gigantescas árvores amazônicas. Seu Raimundo vinha remando desde o Garimpo do Itatá, que ficava próximo as margens do igarapé de mesmo nome, pequeno afluente da margem esquerda do majestoso Xingu. Naquele dia Seu Raimundo havia dado com a sorte grande, e por puro acaso de descuido, encontrou uma enorme pepita de ouro presa a um grande bloco do embasamento que havia se soltado de um morro ao lado. Antes que todos o vissem, Seu Raimundo correu para a canoa, e com um grito distante, despediu-se dos outros garimpeiros.

No garimpo, a turma despediu sem perceber a fortuna que havia escapulido pelos seus dedos, menos Adalberto Sampaio, que em desconfiança da rápida saída, resolveu ir atrás para ver. Sabendo que Raimundo iria até a vila do Galo, pegar suas poucas coisas na casa de um primo e partir logo para Altamira, não deu chance ao azar, e saiu em rápida corrida mato adentro, seguindo uma antiga trilha indígena que percorria cerca de 12 km em meio a subidas e descidas, submersa em uma densa mata. O ocorrido se deu por volta das três horas da tarde, e três horas mais tarde, Seu Raimundo finalmente aportava em uma barranca a uns 100m do povoado.

Não queria se mostrar demais, e resolveu parar naquela barranca e andar até a casa do primo por uma pequena trilha que ladeava o rio até a vila. À noite por pouco ainda não tinha se dado por completo, e Seu Raimundo em rápido caminhar, saiu do barco e rumou em certeza de lembrança o caminho certo. Bem atrás vinha Adalberto Sampaio, que de dentro da mata o acompanhou desde o rio até a chegada na barranca, e viu as desconfiadas e rápidas olhadas que Raimundo dava para os lados. Vida de garimpeiro é assim, se der um pequeno descuido, cai.

Adalberto Sampaio em caminhar flutuante, esgueirava-se pela mata, como um gato do mato, sem fazer o menor barulho. Queria saber o que se passava, e o que iria fazer o tal Raimundo, que havia saído de modo estranho do garimpo. Seu Raimundo seguiu em paranóica visada, até a casa de seu primo, chamou-o na porta, e entrou dando as ultimas conferidas no entorno. Do meio da mata, espreitava Adalberto como uma onça ao ver a caça na mira. Um forte vento começou a soprar, fazendo a floresta toda cantar em sinfonia de folha e galho, se juntando a já ensurdecedora sinfonia que os animais faziam.

Adalberto ficou ali na espreita cerca de meia hora, até que Seu Raimundo Filho saísse de dentro da casa, com um pequeno saco nas costas, e rumava em direção à canoa. Nessa hora Adalberto resolveu ir até a casa que tinha na vila, e passando por outro caminho, conseguiu chegar a casa sem cruzar com Seu Raimundo. Com um chapéu na cabeça, uma blusa esfarrapada, descalço e com uma calça rasgada transformada em bermuda, Seu Raimundo com sua humilde postura, colocou o saco que trazia em mãos na canoa, e começou a desamarrar o nó que havia dado em uma árvore para que a canoa não descesse o rio sozinha. Era noite de lua cheia e o imenso satélite surgia por detrás da muralha arbórea, e logo iluminou todo o lugar.

Na vila, em desespero de busca, Adalberto Sampaio finalmente havia encontrado a espingarda 20” que possuía, e em rápida carreira, correu até a beira do rio. Assustados, alguns moradores olharam-no sem o encarar, e seguiram rumando suas casas, sabiam eles que algo ruim estava para acontecer. O canto do Bugiu deixava toda a cena ainda mais assustadora, tornando aquela noite ainda mais sombria. Adalberto correu de volta pela trilha, e segui até a barranca, onde Seu Raimundo havia acabado de dar as costas, e seguir remando, rumo a Ilha da Fazenda, do outro lado do rio, a montante cerca de 2 km.

O rio Xingu refletia uma imensa Lua, e contrastando com o céu estrelado, reluzia como um negro quadro. Do alto da barranca, Adalberto Sampaio ao ver que Seu Raimundo havia conseguido seguir rumo a Ilha, deu um tiro em direção a canoa, e alguns chumbos atingiram o ombro direito de Seu Raimundo. Desnorteado e sem forças, Seu Raimundo mal consegui se virar para ver o que tinha acontecido, quando de novo recebeu uma saraivada que lhe atingiu o peito. Caiu no fundo da canoa, sem forças para levantar, enquanto na margem, Adalberto rogava pragas e injurias há seu agora inimigo. Naquela noite, a canoa seguiu lentamente, com a correnteza, indo parar já em alta madrugada, em uma pequena ilha onde havia uma minúscula oca, morada de uma velha índia. Era das ultimas índias arredias da região, que já passara por uma “domesticação” de seus índios.
Na manha seguinte, ao abrir os olhos, Seu Raimundo se viu dentro da pequena e escura oca, com o peito e ombros empapados por uma gosma esverdeada, e cobertos com uma folha grande e pouco conhecida por ele. Em rápido reflexo, tentou levantar-se, mas a dor o impediu, e logo voltou a ficar tonto e começou a perder a consciência. Deitado, lutando para não apagar, Seu Raimundo que naquela data beirava os 46 anos, presenciou uma cena que o marcou para sempre.
Uma velha desdentada, de cabelos brancos e com a cara completamente enrugada, pegou algumas penas e jogou sobre o seu corpo, soprando uma pesada fumaça de um forte fumo em sua cara. Adormeceu.

Adalberto Sampaio havia esperado o amanhecer, para conseguir emprestada uma canoa na vila, e seguiu rio abaixo em busca da canoa e do corpo de Seu Raimundo, que guardaria o possível tesouro. Após algumas horas, viu de longe, parada em uma pequena ilha rodeada de pedras, a pequena embarcação, e foi até ela em rápido navegar. Ao chegar, não encontrou nem Seu Raimundo nem o saco com o ouro, e em irritação de desgosto, desceu na ilha em busca do homem que deveria estar morto. Andou poucos metros e avistou a pequena oca que escondida em meio a mata, fumegava como se estivesse a pegar fogo. Parou, e pensou no que fazer. Sabia que ali só podia ser a ilha onde morava a velha índia que ninguém conseguira “domesticar”. Fitou de longe a pequena entrada, e com a arma em punhos seguiu em direção a fumaça que saia da “porta”.

Adalberto Sampaio deu cerca de três passos, quando viu Seu Raimundo sair de dentro da oca, como que em hipnose. Assustado, ergueu a arma, e apontou para Seu Raimundo, dando gritos de alerta e dizendo para que ele não se mexesse e explica-se o que estava acontecendo. Seu Raimundo não se mexeu e Adalberto Sampaio, com o dedo no gatilho, de repente foi atingido na coxa por uma pequena flecha enfeitada com as mesmas penas que a velha índia havia jogado sobre Seu Raimundo. Adalberto se ajoelhou com uma dor a qual nunca havia sentido, e rapidamente sua visão embaçou deixando o desorientado, e sua garganta começara a fechar. Engasgando com a própria respiração, apoiou as mãos no chão, e em sua ultimo lapso de consciência viu a índia jogar o pequeno saco com o tesouro, na sua frente. Esticou a mão e o pegou, e na ultima força conseguiu abri-lo, e constatou o que desconfiava. Havia ali uma imensa pedra de ouro, mas nada mais daquilo lhe valia de alguma coisa. Em forte contração dos músculos, sucumbiu na folhagem espessa do chão, e ouviu uma risada rasgada, aguda e continua vinda de dentro da oca.

Dois dias depois, Seu Raimundo apareceu de volta na vila do galo, deitado em sua canoa, do mesmo modo que apareceu na ilha da velha índia. Sem ouro, e com uma enorme cicatriz no peito, largou o garimpo no mesmo dia, e prestou a fazer serviços quaisquer a todos que lhe pagassem um pão e um café. Hoje vive retirando areia do fundo do rio e vendendo a mineradora que surgiu próximo da vila do Galo. Passados cerca de 15 anos, um jovem vindo das Gerais, ao ouvir essa história incrível, resolveu anotar em seu pequeno diário de campo, e espalhar a todos, essas incríveis, místicas e fantásticas histórias que ocorreram e ainda ocorrem aqui no Xingu!

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